Filhos da Terra: roteiros para adentrar o Brasil profundo

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18 de mar. de 2017

Filhos da Terra é um projeto autoral, a realização de um desejo: documentar e mostrar ao Brasil quem é o povo brasileiro, como são suas festas e celebrações. Nesse sentido, o conjunto de fotografias que nos traz Eraldo Peres soma-se a uma forte linhagem de intérpretes que buscam nossa identidade no domínio da cultura, mais que isso, em uma cultura tradicional que teria se formado a partir de três raças, o indígena, o português e o africano. A liberalidade dos costumes e a escassez de mulheres brancas estariam na origem de todas as gradações de cor, da variedade fisionômica observável nos mulatos, nos mamelucos , nos cafuzos e em outras misturas étnicas. Em suma, o processo histórico teria se cristalizado no fenômeno da mestiçagem que se evidencia não só nos rostos mas também na cultura que esse povo detém.

Por mais que seja um argumento fatigante e mesmo ultrapassado – pois o Brasil recebeu a partir d o século XIX correntes imigratórias de outros europeus, árabes e japoneses – quando se trata de compreender os folguedos e danças brasileiras, não há dúvida de que ali se encontram as três tradições formadoras originais, a luso-cristã, a indígena e a africana. Mário de Andrade diz que “é sempre comovente verificar que apenas essas três bases étnicas o povo celebra secularmente em suas danças dramáticas” (Andrade, M. 1982).

Desde o princípio da construção da nação brasileira, a idéia de um amálgama das raças – em José Bonifácio, por exemplo– vem mostrando seu rendimento simbólico. Ainda em 1845, Von Martius, um sábio bávaro que andou entre nós, conquistou o primeiro prêmio em concurso promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em torno da questão: como deve ser escrita a História do Brasil. A resposta reflete bem sua posição e o vínculo que mantinha com a Casa Real: seria um equívoco escrever a História do Brasil sem considerar a contribuição dos três povos que a fizeram, o nativo, o escravo negro e o português, este último considerado por ele o mais importante em número (o que não era verdade) e em influência para a formação do brasileiro. Essa tese, repetida e referendada inúmeras vezes, é a mesma que organiza obras do porte de Casa Grande e Senzala (Gilberto Freyre, 1933) que enfatiza sobremaneira o papel do negro na vida brasileira; O povo brasileiro (Darcy Ribeiro, 1960) que busca suprir a deficiência da obra anterior no que diz respeito à contribuição indígena ; ou até mesmo as obras de ficção Macunaíma (1928) de Mário de Andrade e Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro ( 1984), obras que buscam a síntese de uma identidade que não encontrará nunca a unidade, que será sempre arlequinal, carnavalizada, impura. Seja como for, o modelo das três raças originais tornou-se o mais persistente mito de fundação da nossa nacionalidade.

Outro princípio que orienta a pesquisa de Eraldo Peres é o da cartografia. Cartografar é traçar roteiros em um mapa, um princípio de método que faz dos fragmentos pequenas unidades que ora se conectam ora se apartam. Identificar festas e celebrações relevantes em pontos diferenciados do país, cobrindo uma extensão que vai da Amazonia aos Pampas, da Costa Atlântica ao Pantanal, no extremo oeste, mostrando seu vínculo com a terra, com o trabalho e com o sagrado, base de todas as festas populares tradicionais.

De fato, as regiões culturais (Diégues, 1960; Ribeiro, 2007) selecionadas pelo fotógrafo são reveladoras de um processo específico de ocupação humana e evidenciam a existência de um complexo ecológico que inclui atividades econômicas mas também abarca idéias, sentimentos, estilo de vida, valores culturais não apenas justapostos mas que se integram, fundem seus traços e tornam-se visíveis principalmente nas manifestações culturais. A cultura popular tradicional é um terreno poroso, um mapa em aberto que permite a incorporação, a conexão, a montagem e o desmonte de fragmentos de diferentes origens, o que explica a multiplicidade de referências e as transformações das festas assim como a criação de novos ritos que surgem ao longo do processo histórico. Assim é que a câmera de Eraldo documenta festejos relatados desde o período colonial, como as marujadas, até o ritual da Ayahuasca, de data bem recente.

As imagens que resultam da imersão do fotógrafo nessas paisagens e cenários são reveladoras da relação existente entre os membros da comunidade, entre esta e a terra ocupada, as riquezas disponíveis e os recursos simbólicos de que são detentores , saberes e práticas que são meios de preservação e de transmissão de valores para as novas gerações. Afirmando o pertencimento de Eraldo Peres à melhor tradição do documentarismo, as fotografias registram e ensinam a diversidade e a riqueza da cultura brasileira, a especificidade de cada festa de acordo com a região em que ocorre, como por exemplo, o Bumba-meu-boi, presente com características distintas em todo território nacional.

Por meio das fotos é possível refazer os itinerários de Eraldo que de flagrante em flagrante constrói narrativas que alargam o horizonte da fotografia documental e trazem um viés subjetivo , uma interpretação da realidade, em seus aspectos éticos, estéticos e sociais. Contrariamente à tradição do documento como registro puro que obedece a protocolos e leis do gênero – retração do fotógrafo, objetividade, frontalidade – as imagens de Eraldo Peres são o resultado de um fazer poético consciente. As composições são clássicas e equilibradas mas as figuras estão sempre em perspectivas deslocadas (plongée, contra-plongée, amorce), a luz é quase sempre a do ambiente; há imagens borradas tomadas em movimento e os detalhes destacados buscam valorizar a arte do povo: a imagem de Nossa Senhora Aparecida toda bordada em lantejoulas sobre fundo de cetim azul sai das costas de um brincante que define um volume em primeiro plano, em equilíbrio com a igreja, em perspectiva, mais afastada. Unindo os dois volumes, varais de bandeirinhas multicoloridas contra o céu realçam o brilho da noite.

As imagens são portadoras de uma poética discreta e sutil. Nelas, a realidade transpira sem que haja sacrifício da imaginação. Retiram das partes visíveis o que há de invisível e de transcendente nas festas e rituais. Nessas fotografias materializa-se uma espécie de força oculta, uma força decisiva que transparece na dignidade dos rostos e e das posturas, que dota de poder os participantes quando transportados para aquele mundo de magia durante as festividades, mostrando como a parcela mais pobre do povo detém a mais rica parte da cultura espiritual desse país.

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Angélica Madeira é professora e pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB) e Instituto Rio Branco.

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